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Metades

- Mãe? Estou doente.

Não reconheço uma perna, um braço.
A minha própria mão, o meu lábio inferior. Não os sinto.

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Palavra: raízes

Começo pelo princípio de quem conta uma história de pérolas.

Beatriz subiu no baloiço, não existiam dias nem horas só segundos numa noite de inverno. Ele lembra-se que era inverno, trazia nos bolsos morangos que com o suor se dissolveram numa papa vermelha que lhe tingiu os calções. Não nos interessa a roupa de Beatriz. Quero saber de que côr estava pintado o seu corpo. Beatriz era branca.
O baloiço nunca saía do lugar, os únicos movimentos aconteciam quando ela lhe tocava. A tábua suspensa, numa árvore de cores sem significados, sempre esperou pela mão dele. Sussurrava a Beatriz que não se mexesse, ele viria.
Num outro lugar ali perto ela perdeu o branco da sua pele, não desistiu de esperar, abandonou a árvore, largou-se num mundo de tantos outros sabores.

(18.04.06 continua)

Por demorados anos adiou o destino do baloiço, por noites seguidas dormiu sobre cores que não reconhecia. Beatriz deixou-se ir como quem se entrega ao mar. Está tudo bem, continuem as vossas vidas miseráveis eu nasci para mudar o rumo do mundo. E continua a nadar. Foi-lhe apresentada a causa das coisas, sem nunca ter sentido as coisas.
Ela esperava-o sentada no baloiço, a imagem perseguia-a nas noites em que dormia. Tocava o baloiço e olhava a árvore, fixava as suas folhas que caíam sobre as raízes que contavam o tempo. Não avistava pessoas, não cheirava nem lhes beijava as cores, queria senti-lo para sempre, deixar-se embalar pela sensação da sua presença. As raízes esconderam-se. Ela continuava o seu caminho. Adiando a vida.

Ele esqueceu-se da sua missão. A ruína possui-o. Adormeceu uma só vez e largou o tempo. Tombou, abraçou a sua mãe e passou a viver no sonho, agarrado a tudo o que não existiu, sonhava com morangos e chapéus de renda, com olhos doces e sorrisinhos matreiros.
A sua mãe percebeu-o e deixou o seu corpo regressar ao ínicio, deixou-o moldar-se a si mesma. Fez acordar a palavra e transformou o seu pequeno deus na raíz mais sofrida.


(continua)

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Sistemas de vidas

"Morremos por estarmos a mais
e estar a mais é ir morrendo em cada dia
Estar a mais é não ser o que se é ou não pode ser
e ser a hesitação de quem perdeu o rumo
e gira em torno da sua própria ausência

(...)

Assim o homem é quem é e quem não é
e entre estes contrários a tensão é insustentável
o que se faz exceder-se e ser a mais

(...)"

António Ramos Rosa, Deambulações oblíquas

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Violadores

Estou atenta ao meu corpo que se entrega à tua metáfora.

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Preversão

Uma bela mulher que transformava a cor dos olhos consoante a dor que fazia bater o coração. Essa mulher que se esqueceu do destino numa gaveta, e passou a trazer debaixo do braço as coincidências. Não estranhes se a encontrares na noite em que só ela consegue ver, nos seus saltos altos e roupa negra, de óculos escuros enfrentando a escuridão. Não estranhes a cor dos seus olhos que se pintam de verde e negro. Não entranhes essa bela mulher. Perdoa-lhe os erros e a loucura, a sua vida era feita de uma novela, de um tecido venezuelano de fraca qualidade. Tudo porque teimava em não afastar os amores que lhe deixaram de telefonar. Tudo porque os catalogou por preços nas caixas vazias dos sapatos que os pés vestiam. Dia sim dia não. Mulher bela não chora. Mulher bela deita fogo às lágrimas. Mulher bela cerra os dentes com raiva. Mulherdelábiosmordidos não fala ao coração. Grita e fuma cigarros.

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Sonho de Achille-Claude Debussy

"Antes de vestir o fato de banho fez algumas flexões com os joelhos e em seguida acariciou longamente o sexo, que estava semi-erecto (...)

Sentiu imediatamente a influência benéfica da água. Gostava do mar mais do que de qualquer outra coisa e gostaria de lhe dedicar uma música. (...) Pareceu-lhe que o tempo tinha parado e pensou que a música devia fazer isso: parar o tempo. (...)

Quando o viram chegar, os três seres sorriram-lhe e o fauno começou a tocar uma flauta. Era exactamente a música que Debussy teria querido compor, e registou-a mentalmente. Depois sentou-se sobre as agulhas dos pinheiros, com o sexo erecto. Nesse momento, o fauno agarrou uma ninfa e uniu-se com ela. E a outra ninfa aproximou-se de Debussy com um ágil passo de dança e acariciou-lhe o ventre. Era de tarde, e o tempo estava imóvel."

Antonio Tabucchi, Sonhos de sonhos.

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Caixa dos sapatos

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Porta lubridiada

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Enquanto dançamos

E tocas
todas as cores no meu ........................corpo.








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(warning)

Quem te escreve, não tem tendências suicidas.

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Stoked

Um dia quero escrever sem usar o tempo, sem entrar pelas memórias, pelas minhas e pelas vossas. Hei-de abrir um buraco e com as minhas mãos sujas de terra arrumarei os verbos, organizados pela textura. Depois, depois desse dia sei que acordarei cega.
Hoje pressenti-o.

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Submissão

Não estava preparada para gostar do seu sexo. Na verdade sempre o soube, se ele não era um dos seus grandes amores, ela guardava alguns, era porque não iria gostar do seu sexo. Sonhava com isso todas as noites, tornou-se compulsiva enquanto perseguia o seu cheiro pela cidade que cada vez mais odiava. Sempre os mesmos buracos, as mesmas pedras, a cor que não se esbatia, nem o seu próprio cheiro mudava. Esperava pela noite, tocava-se entre silêncios e murmúrios com o seu nome tingido procurando o prazer que ele nunca lhe tinha dado.

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Saved

A nudez é um vício.

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Panos sagrados

Numa quinta feira que foi santa ficou a minha memória. O padre absolveu-me os pecados (eu não os tenho disse-lhe, só quero saber o que se faz quando se deixa de procurar Deus). Se estivermos atentos encontramos o que não procuramos. Para deixar o Bem nascer devemos renunciar. É aí que me encontro. Nas manhãs em que saio dos lençois desejo uma coisa boa pelo bem. Passo o dia a renunciar. Comprei a palavra - não.